por Paulo da Vida Athos
Quando em meados de 1988,
apadrinhado por Denis da Rocinha (Denis Leandro da Silva) que se encontrava
preso, Ednaldo de Souza, o Naldo, para anunciar seu reinado do alto de uma laje
de uma das casas, com desassombro desferiu uma rajada para ao ar com a “Jovelina”,
sua HK-47, o Rio de Janeiro de então ficou surpreso. Na foto, onde também
surgia uma submetralhadora Uzi, estavam: Naldo, Buzunga (Robson da Silva) e
Cassiano (Cassiano Barbosa da Silva) para uma pose diante dos fotógrafos.
Afinal, para aquele ato Naldo convocara toda a imprensa policial pois queria
deixar claro que não havia cisão entre eles. A cerimônia de posse se deu na Via
Ápia, e a imprensa, convidada, se fez presente. Essa foto correu o mundo. Hoje,
todos os mencionados estão mortos. No passado, em algum momento na trágica
crônica da Rocinha, todos foram donos dela. E o Rio de Janeiro de hoje,
certamente, nem se abalaria com tal ato
Depois deles, dezenas de donos
por lá passaram. Os três últimos que temos mais claramente na memória são: Dudu,
Lulu e Bem-te-vi.
Ao longo desses dezessete anos
a Rocinha testemunhou, e não pela vontade de seus moradores honestos, a
evolução bélica do crime pseudo-organizado que aposentou a Uzi, revólveres
obsoletos, dando preferência, para garantir o território, aos fuzis e
armamentos mais sofisticados, e munição que vai da bala traçante (que deixa um
rastro fúnebre de luz no céu das noites e madrugadas cariocas) a outras que
atravessam facilmente as paredes de alvenaria de qualquer casa comum.
A sociedade, da qual faz parte
as pessoas honestas da Rocinha, ficou a mercê do crime.
Bom lembrar aos incautos que
mais de 99% dos moradores de qualquer favela, que alguns gostam de sofismar
chamando-as de comunidades, são trabalhadores, pessoas de bem, nem mais nem
menos dignos que aqueles que moram nas zonas mais favorecidas da cidade. A
única diferença: moram nos guetos e neles não há a presença do Estado. Mas essa
única diferença é mais que fundamental, é vital.
Nos guetos não prevalece a
força do direito, mas o direito da força. E lá quem tem a força não é mais o
Estado, faz décadas.
Mas quando o Estado se faz
presente: é para matar. Ou deixar matar por omissão que, no caso, fosse o
estado uma pessoa física responderia por homicídio comissivo por omissão (seja,
responderia como se houvesse apertado o gatilho já que tinha o dever legal de
agir, de impedir o resultado). Pelas primeiras informações não havia
policiamento em um local que está, sabidamente, em estado de guerra entre
traficantes. Isso caracterizaria a comissividade estatal.
A Polícia Militar tem um
balanço sobre a invasão da noite de ontem. Nove pessoas foram presas, sendo
quatro entre a noite e a madrugada e cinco no início desta manhã. Seis pessoas
morreram durante a invasão, entre elas o estudante Diego de Araújo Lima, de 14
anos. Os outros cinco corpos foram encontrados na favela nesta manhã.
Segundo os moradores, pelo
menos três deles seriam trabalhadores e moravam na Rocinha. Seis moradores
ficaram feridos durante a ação: Francisco Plínio, de 13 anos, baleado na coxa
esquerda, Leandro Alves Ferreira, de 19, baleado nas nádegas, Alexandre da
Silva, de 26, ferido por estilhaços, Joelma da Siva, de 33 anos, ferida a
coronhadas, uma pessoa atropelada e uma criança ainda sem identificação.
Entre o fogo dos quadrilheiros
do tráfico e da polícia, está o povo. Se nós olhássemos o povo da Rocinha como
deveria ser, como parte do Povo do qual fazemos parte, talvez a realidade fosse
um pouco diferente. Mas não os olhamos como um de nós.
Há um cinismo hipócrita em que
a sociedade carioca se banhou tanto que já nem sente. Não se compadece, não se
espanta, não fica indignada diante da morte de uma criança atravessada pela
bala de um fuzil, não toma as ruas ao tomar conhecimento que o corpo de mais
uma mãe ou um pai encontrou outra bala perdida. Não demora e veremos mais um
daqueles conhecidos abraços coletivos que a imprensa irá registrar para, logo
depois, cair no esquecimento em razão de sua própria ineficácia.
O beatiful people ainda não caiu na real. Não percebeu que a guerra
civil não declarada já é uma realidade que deixou de cantar na praça e está
cantando e na porta de casa. Iludidamente, quando a chapa esquenta, a primeira
coisa que pede é a presença das Forças Armadas nas ruas, ou leis ainda mais
hediondas do que já conseguiram junto aos nossos incompetentes legisladores
(ainda mais em anos eleitoreiros como esse), como se tal ou qual estupidez
fosse resolver alguma coisa. Aí, um abraço para o abraço solidário.
Já passou da hora de se
despertar que não será com helicópteros e fuzis, com invasões de nossos guetos,
com leis cada vez mais severas, com prisões superlotadas, com o sangue de
inocentes, com mais cadáveres enfim, que estaremos caminhando para uma solução
de paz. Já passou do tempo de se reconhecer que nosso silêncio conivente
alicerçou a espoliação da maioria em favor de alguns.
Não haverá paz sem justiça
social.
Os bizarros contrastes
econômicos e sociais que testemunhamos, não se iludam, alimentaram-se de nosso
anacrônico comodismo. Diante de nossa omissão e permissividade, por
historicamente não cobrarmos de quem elegemos políticas públicas eficazes,
chegamos a essa esquina do tempo escura e perigosa. Minimamente almoçar e
jantar deveria ser um direito exercido por todos, mas nem isso temos. Aliás,
longe disso estamos. Não há necessariamente uma ligação entre pobreza e crime.
Mas no Brasil, indubitavelmente a degenerescência teve origem em nossos descaso
com relação á maioria.
Isso é fato.
Ao aceitarmos o que ocorria e
ocorre em nossos guetos, permitimos com que essa realidade chegasse ao patamar
que chegou. Não ligávamos se lá a lei era ou não era respeitada, se a polícia
invadia ou não suas moradias, se inocentes estavam ou não morrendo, se seus
moradores tinham ou não acesso a escola, hospitais e segurança pública.
Desde ontem, seis pessoas
morreram. Há quase duas décadas Naldo deu aquela rajada com sua
"Jovelina". Desde Naldo aos dias de hoje, tudo só se agravou até sair
do controle. Agora, mesmo passando da hora, é hora de nos despirmos do cinismo
e cobrarmos de nossas autoridades, é hora de escolher como quem cata grãos da
vida, em quem depositaremos nossos votos na próxima eleição.
Está na hora de recusarmos
toda a lavagem cerebral que nos entorpeceu de cinismo, através de nossa
indignação repetida e diária contra o esbulho que até então consentimos contra
os desvalidos. Descartemos com veemência tudo que se prega de violento para
acabar com a violência.
Não se apaga a luz para ver o escuro.
Não será com mais penas, mais
fuzis e mais cadáveres que pavimentaremos a paz social que o Brasil e o povo
carioca e paulista, de forma especial, sonham. Se apostarmos em outra coisa que
não seja justiça social, continuaremos alimentando o nosso apartheid e nossa
guerra civil.
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